domingo, 7 de junho de 2020

Estudo 3 - Casa Mirfe


ESTUDO 3


por Messias R. Medeiros



Olá, neste estudo 3, continuaremos a interpretar os textos que são usados pelos conservadores para condenar qualquer prática não cisheteronormativa.

Focaremos no entendimento dos textos de Levítico 18:22 e 20:13. Analisaremos os dois textos e o interpretaremos aos moldes do método que apresentamos no estudo anterior.

Todos os trechos bíblicos aqui citados em sua versão em português será feito por meio da Nova Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil.


I. Descrição do Texto


Apresento abaixo os textos de Levítico 18:22 e 20:13:


Não se deite com outro homem para ter relações com ele como se fosse mulher; é abominação.

Se também um homem tiver relações com outro homem, como se fosse mulher, ambos praticaram coisa abominável; serão mortos; o seu sangue cairá sobre eles.


II. Definições dos Contextos


É essencial para entendermos e interpretarmos o texto da melhor forma possível, seguindo o método hermenêutico utilizado, que passem as seguintes definições:

1. Contexto Interno Local: Levítico 18:1-30 e Levítico 20:1-27;

2. Contexto Interno Global: Deuteronômio 13:13-14, 20:18, 24:4, 25:14-16, 1 Reis 14:24, 2 Reis 16:3 e Provérbios 6:16-19;

3. Contexto Externo: retomamos os pontos levantados no estudo anterior. Aqueles pontos do contexto externo se aplicam em igualdade similar ao entendimento dos textos de Levítico (vide o contexto externo do estudo anterior). A saber, em resumo –

a) o fato das culturas ao redor do antigo Israel serem politeístas e adoradores de outros deuses, e em suas práticas cultuais eram comuns os sacrifícios humanos, a prostituição ritual ou cultual ou ainda o sexo ritual, que ocorriam geralmente em festivais a estes deuses;

b) o livro de Levítico faz parte da Torah, tinha como propósito trazer leis que deveriam ser seguidas pelo povo e orientada ao trabalho junto ao tabernáculo (e, posteriormente, ao templo), tinha, portanto, uma natureza cerimonial, ritual e cultual;

c) este livro também padece do mesmo problema da unicidade duvidosa que o gênesis, pois é um compilado de vários trechos, nem sempre em alguma ordem lógica, como, por exemplo, o enxerto do capítulo 19 (sobre leis aleatórias) quebrando um contexto que tratava de pureza ritual do capítulo 18 e 20.


III. Interpretação de Levítico 18:22 e 20:13


Os textos em análise estão inseridos num compêndio de leis que diziam respeito a práticas idólatras que eram comuns no Egito antigo e nos povos de canaã ao redor do povo hebreu. Levítico 18:3-5 deixa isto claro:


Não façam como se faz na terra do Egito, onde vocês moraram, nem façam como se faz na terra de Canaã, para onde eu os estou levando. Não andem segundo os estatutos desses povos. Cumpram os meus juízos e guardem os meus estatutos, para andarem neles. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês. Portanto, guardem os meus estatutos e os meus juízos. Aquele que os cumprir, por eles viverá. Eu sou o Senhor.


É nesta lista em que Levítico 18:22 irá aparecer. Portanto, não se pode querer interpretar este texto como se fosse isolado da lista a qual faz parte. Vejamos o rol na íntegra:

1. Não faça sexo com uma parenta próxima (v. 6): mãe (v. 7), madrasta (v. 8), irmã (v. 9), neta (v. 10), meia irmã (v. 11), tia por parte de pai (v. 12), tia por parte de mãe (v. 13), esposa do seu tio (v. 14), nora (v. 15) e cunhada (v. 16), mãe e filha ao mesmo tempo (v. 17) e irmãs ao mesmo tempo (v. 18);

2. Não faça sexo com uma mulher enquanto estiver menstruada (v.19);

3. Não faça sexo com a mulher que pertence a outro homem (v. 20);

4. Não sacrifiquem os seus filhos a moloque (v. 21);

5. Não faça sexo com homem como se fosse uma mulher (v. 22);

6. Não faça sexo com animais – adendo para referir-se a mulher (v. 23).


Após esta lista, o texto ainda nos trás nos versos de 24 ao 30:


Não se contaminem com nenhuma destas coisas, porque com todas estas coisas se contaminaram as nações que eu vou expulsar da presença de vocês. A terra se contaminou; eu a castiguei por sua iniquidade, e ela vomitou os seus moradores. Vocês, porém, guardarão os meus estatutos e os meus juízos, e não farão nenhuma dessas abominações, nem o natural da terra, nem o estrangeiro que peregrina entre vocês. Porque os moradores desta terra que nela estavam antes de vocês fizeram todas essas abominações, e a terra se contaminou. Que não aconteça que a terra vomite vocês também, por terem se contaminado, como vomitou o povo que nela estava antes de vocês. Todo aquele que fizer alguma dessas abominações, sim, aqueles que as cometerem serão eliminados do seu povo. — Portanto, vocês devem guardar a obrigação que têm para comigo, não praticando nenhum dos costumes abomináveis que foram praticados antes de vocês, e não se contaminem com eles. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês.


É nítido que em todo o contexto interno local de Levíticos 18:22, a admoestação é que o povo de Israel não se contamine com as práticas dos povos antigos ao redor de onde viverão. A condenação aqui é sempre vinculada a idolatria daqueles povos. Note-se também que o texto é voltado apenas para os homens, exceto na proibição de fazer sexo com animais que incluíram as mulheres.

O povo hebreu é patriarcal, portanto, a mulher tinha um lugar bem definido e de inferioridade em relação ao homem, daí porque não eram dignas se quer de receberem punições, pois acreditavam que se seus maridos e pais seguissem a lei, elas não poderiam se desviar dela. Isto ajuda a entender, porque só as práticas masculinas são mencionadas em quase todo rol de proibições, mesmo sabendo que a prostituição cultual a moloque (deus cananita) era também feita por mulheres (vide 1 Reis 14:24).

Levítico 20:13, por sua vez, segue a mesma lógica de seu texto homônimo. Faz parte de outro rol, dessa vez mais incisivo quanto a idolatria praticada para com o deus moloque, como bem é apresentado no início do seu contexto interno local em Levítico 20:1-8:


O Senhor disse a Moisés:

Diga também aos filhos de Israel: Qualquer dos filhos de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam em Israel, que entregar um de seus filhos a Moloque será morto; o povo da terra o apedrejará. Voltarei o meu rosto contra esse homem e o eliminarei do meio do seu povo, porque entregou um de seus filhos a Moloque, contaminando, assim, o meu santuário e profanando o meu santo nome.

Se o povo da terra fechar os olhos para o que esse homem fez, ao entregar um de seus filhos a Moloque, e não o matar, então eu voltarei o meu rosto contra esse homem e contra a sua família e o eliminarei do meio do seu povo, com todos os que o seguem e se prostituem com Moloque.

Quando alguém se virar para os necromantes e feiticeiros, para se prostituir com eles, eu voltarei o meu rosto contra ele e o eliminarei do meio do seu povo. Portanto, santifiquem-se e sejam santos, pois eu sou o Senhor, o Deus de vocês. Guardem os meus estatutos e tratem de cumpri-los. Eu sou o Senhor, que os santifico.


É somente depois destas admoestações que o texto apresenta outro rol de práticas vinculadas ao culto a moloque. Segue o segundo rol do capítulo 20:

1. Amaldiçoar pari e e mãe. Punição: morte (v. 9);

2. Adulterá com a mulher que pertence a outro homem. Punição: morte (v. 10);

3. Punição de morte para quem fizer sexo com: sua madrasta (v.11), sua nora (v. 12), homem como se fosse mulher (v. 13), a filha e a mãe ao mesmo tempo (v. 14) e com animal (homem e mulher – v. 15 e 16);

4. Punição de eliminação da vista do povo se fizer sexo com: sua irmã (v. 17) e uma mulher menstruada (v. 18);

5. Quem faz sexo com sua tia e com a esposa do seu tio sofrerá as consequências de sua iniquidade (v. 19-20);

6. Não terão filhos quem tomar a mulher do seu irmão como esposa serão punidos não tendo filhos (v. 21);

7. Se praticar necromancia ou feitiçaria será morto (v. 27).


Ao que parece o primeiro rol (Levítico 18) trata de informar as “abominações” e o segundo rol (Levítico 20) trata das punições. Então, há uma conexão dos dois texto que acabam por ser interpretados em conjunto, por consequência.

Para não ter dúvida que o contexto interno local deixa claro que as duas listas de práticas tinham relação com a idolatria dos povos ao redor do povo hebreu, inclusive citando nominalmente o deus moloque (deus dos cananitas amorreus). Ao final da lista há ainda as seguintes admoestações:


Guardem, portanto, todos os meus estatutos e cumpram todos os meus juízos, para que a terra para a qual eu os estou levando, para nela habitar, não os vomite de lá. Não andem nos costumes dos povos que eu vou expulsar de diante de vocês, porque fizeram todas estas coisas; por isso, me aborreci deles. Mas a vocês eu já disse que herdarão a terra deles; eu a darei a vocês em herança, terra que mana leite e mel. Eu sou o Senhor, o Deus de vocês, que os separei dos outros povos.

Portanto, façam distinção entre os animais puros e os impuros e entre as aves impuras e as puras; não se façam abomináveis por causa dos animais, ou das aves, ou de tudo o que se arrasta sobre a terra, os quais separei de vocês, para que as considerem impuras. Sejam santos para mim, porque eu, o Senhor, sou santo e os separei dos outros povos, para que sejam meus.


O foco ao final desta segunda lista é deixar claro que as práticas arroladas tinha vinculação às práticas idólatras, e o objetivo ao não praticá-las era serem santos para adorarem ao seu Deus. E aqui cabe um esclarecimento do termo “santo ou santificado”, a ideia do antigo testamento para santo é de separação (como povo exclusivo, no caso) do restante dos povos, para adorar somente a Deus. Então, quando se fala em sede santos, quer dizer, se afastem dos ídolos de barro, madeira e pedra, e me adorem porque eu sou o único Deus verdadeiro.

Até aqui, pelo contexto interno local e pelo contexto externo, temos uma segurança no mínimo razoável de que a homoeroticidade condenada pelo texto não é ampla e irrestrita, mas a veiculação dela junto a práticas pagãs de idolatria que os povos ao redor dos hebreus cometiam. Forçar para que essa condenação seja estendida às praticas homossexuais do presente é no mínimo um anacronismo, isto é, atribuir características do passado ao presente ou vice-versa.

Ainda nos falta analisar o contexto interno global, apesar de que ficou demonstrado pelos demais contextos a forma mais coerente de interpretação das passagens. Todavia, tomaremos como prudência o excesso.

Se voltarmos aos dois textos em análise deixei em negrito as traduções da palavra hebraica Toevah (תּוֹעֵבָה) traduzida na Septuaginta em grego por bdelygma, pois ela nos ajudará a entender o sentindo dos textos também. Toevah é traduzido em português costumeiramente por: abominação, sacrilégio, desprezamento, repugnância, etc. Porém, o termo original tem o sentido de “ofensa ritual” bem como no grego da Septuaginta, no sentido que aquilo afrontava o sistema religioso hebreu não politeísta, já que as práticas em que teovah aparece relacionadas eram comumente realizadas entre os povos idólatras ao redor deles. Isto ajuda a entender o porquê somente em Levíticos, livro feito para ser usado pelos sacerdotes, estas listas aparecem.

A palavra Toevah aparece 117 vezes no antigo testamento, sendo que 26 vezes apenas na Torah.

Se o próprio sentido da palavra não é suficiente, vejamos no contexto interno global, onde mais esta palavra aparece (alguns exemplos):


Deuteronômio:


1. que homens malignos saíram do meio de vocês e incitaram os moradores da cidade, dizendo: “Vamos servir outros deuses”, deuses que vocês não conheceram, então vocês devem inquirir, investigar e perguntar com diligência. E eis que, se for verdade e certo que tal abominação foi praticada no meio de vocês (13: 13-14)

...

2. para que estas nações não ensinem vocês a fazer segundo todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, pois vocês estariam pecando contra o Senhor, seu Deus. (20:18)

3. então o primeiro marido dessa mulher, que a mandou embora, não poderá casar-se de novo com ela, depois que foi contaminada, pois é abominação diante do Senhor. Assim, vocês não farão pecar a terra que o Senhor, seu Deus, lhes dá por herança. (24:4)

4. Não tenham em casa dois tipos de medidas, um grande e um pequeno.
Usem um peso integral e justo, e uma medida integral e justa; para que se prolonguem os seus dias na terra que o Senhor, seu Deus, lhes dá.
Porque todo aquele que pratica tal injustiça é
abominação ao Senhor, o Deus de vocês. (25:14-16)


Outros textos:


5. Havia também na terra prostitutos cultuais. Fizeram segundo todas as coisas abomináveis das nações que o Senhor havia expulsado de diante dos filhos de Israel. (1 Reis 14:24)

6. Andou no caminho dos reis de Israel e até queimou o seu filho como sacrifício, segundo as abominações dos gentios, que o Senhor havia expulsado de diante dos filhos de Israel. (2 Reis 16:3)

7. Seis coisas o Senhor Deus odeia, e uma sétima a sua alma detesta: olhos cheios de orgulho, língua mentirosa, mãos que derramam sangue inocente,coração que faz planos perversos, pés que se apressam a fazer o mal, testemunha falsa que profere mentiras e o que semeia discórdia entre irmãos. (Provérbios 6:16-19)



Perceba que há uma atrelação direta entre a palavra Toevah e a questão da idolatria (textos 1, 2, 5 e 6 citados, e na maioria das vezes em que aparece no antigo testamento). Enquanto nos textos 3, 4 e 7 há a elevação de práticas a condição de ofensa ritual que impediria com que esse povo pudesse adorar a Deus em exclusividade, já que é este o propósito dos textos.


Conclusão


Ao fim dessa exaustiva interpretação dos textos propostos, me chama a atenção que as mesmas pessoas que condenam a homoeroticidade (e homossexualidade), mesmo que lendo o texto de forma literal, se esquecem que seria toevah (ofensa ritual ou impureza ritual) no mesmo nível da homoretocidade, por exemplo, fazer sexo com sua esposa estando menstruada ou amaldiçoar o pai ou a mãe. E se estendermos isto ao restante da Torah, vamos ter várias leis que não são seguidas por estas mesmas pessoas. Neste sentido, literalista, elas também estariam em toevah e seriam assim abominações ao Senhor.

Mas, como já vimos repetidas vezes neste estudo, é um erro de interpretação bem grosseiro, entender que as passagens que dizem respeito a ofensas rituais ou cultuais (teovah) digam respeito a realidade pós-morte vicária de Cristo, que resume em si mesmo toda a Torah (Lei) e os Nevi’im (Profetas) conforme Romanos 10:4, Mateus 5:17, 7:12 e 22:40 e Lucas 16:16, por exemplo. Nesta realidade, o fim da lei é Cristo e o amor é o cumprimento da Torah e dos Nevi’im.

Assim, os textos de Levítico 18:22 e 20:13, não podem ser, intelectualmente honesto, atrelados a realidade da homossexualidade do presente. Isto é anacronismo. Não se pode dizer que Deus não aceita os homossexuais ou transsexuais por estas duas passagens, pois elas se limitam a homoeroticidade masculina restrita aos círculos idolátricos de culto. E que nada tem a ver com a realidade do nosso tempo presente.

Quem assim o faz, faz se aproveitando do isolamento do texto, isto é, sem observar seu contexto, para favorecer seu próprio preconceito. É na realidade, de natureza estritamente humana, são conservadores, e utilizam da bíblia para favorecerem seus preconceitos.


Ficamos por aqui neste estudo 3, e prosseguimos nos próximos estudos com os demais textos arrolados no estudo 1. Até lá!

Que o Senhor Jesus esteja com cada um de nós, hoje e para sempre! A Ele seja glória para sempre! Amém!



Vídeo aula: assistir aqui

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