ESTUDO 8
A Identidade de Gênero de Deus
por Messias R. Medeiros
A questão que me leva a trazer esse tema a respeito da identidade de gênero de Deus, se deve ao fato de que a igreja continua a se referir a Deus no masculino. Mas, por quê? E qual impacto isto tem?
Mas, antes de entrarmos nessa discussão é necessário entender primeiro algumas coisas.
I. Patriarcalismo
O patriarcalismo pode ser definido como sendo uma estrutura social caracterizada pela noção imposta institucionalmente dos homens sobre as mulheres e filhos, que são aplicadas no ambiente famíliar (família tradicional), social (toda a sociedade), econômico (produção e consumo), político e de legislação (ocupação dos espaços institucionais do estado) e cultural. Isto é, toda a sociedade é estruturalmente afetada por esta forma de pensamento e prática de vida.
A regra é a ideia da dominação dos homens sobre mulheres e crianças por meio da violência. Veja, para que o homem alcance o seu papel socialmente determinado de dominação, é necessário usar algum tipo de violência (real, verbal ou outras formas simbólicas) para conseguir fazer sua “autoridade” ser efetivada. E, por isso, ao sinal de qualquer tentativa de subverter essa ordem é prontamente rechaçada com mais violência. Essa estrutura é reproduzida de geração à geração, subvertendo a noção do que é real do que é criado socialmente por um grupo dominante.
É somente a partir da emergência do movimento feminista ao final do século XIX que esta noção patriarcal começa a ser questionada. Até, então, as mulheres reproduziam o pensamento patriarcal como única alternativa social possível. Esse movimento feminista é que alterará profundamente ao longo de dezenas de anos, no ocidente, a noção do que seria uma superestrutura social, fazendo nascer uma alternativa ao modelo patriarcal até então, uno, o do matriarcalismo que se contrapõe ao patriarcalismo.
Todavia, o matriarcalismo não tem por objetivo inverter o sinal em relação ao modelo patriarcal, mas extinguir a ideia de domínio dos homens e seu recurso de manutenção (a violência). Assim, se quer, no matriarcalismo, que todas as pessoas tenham pé de igualdade e que ninguém precise dominar ninguém, mas viver socialmente em um lugar de equidade e igualdade, independente do sexo biológico pelo qual se nasce. Assim, é a ideia de correção da superestrutura e não de mudança de sinal.
É importante ressaltar, ao final, que essa superestrutura social chamada patriarcalismo está presente na sociedade humana, das maiores às menores, desde a antiguidade. E, no nosso caso, a Bíblia quanto produto de uma sociedade patriarcal, como o era a sociedade hebraico-judaica, também não fica atrás. Todas as estruturas patriarcais estão ali presentes em falas, leis, regulamentos e todo tipo de moralidade dela advinda – já expliquei no ciclo de estudos anteriores, do estudo 1 ao 7, que a Bíblia é, em alguma medida, fruto da sociedade onde estava inserida e seria um equívoco racional, negá-la por diversos motivos já expostos –. Assim, é necessário que aquele que se atreve a entender o que ali se contem consiga identificar e isolar tais influências da melhor forma que lhe for possível.
II. Identidade de Gênero, Sexo Biológico e Orientação Sexual
Não tenho, por propósito, neste estudo discorrer exaustivamente sobre os conceitos de identidade de gênero, sexo biológico e orientação sexual. Parto do princípio de explicar o que é cada um apenas e quem quiser se aprofundar poderá fazê-lo nos diversos meios que a internet disponibiliza.
Um primeiro ponto a ser mencionado é que na sociedade patriarcal existe um indubitável correlação entre estes termos. A ideologia patriarcal toma o sexo biológico como determinante da identidade de gênero e da orientação sexual das pessoas. Assim, se alguém nasce com sexo biológico feminino, o gênero definido é o de mulher, a orientação sexual é heterossexual, e isto se repete para quem nasce com o sexo biológico masculino. É, portanto, uma lógica exclusivamente binária. E isto é determinante e impactará até o fim da vida da pessoa. O problema neste modelo é quando a pessoa não consegue se encaixar na ideia patriarcal do que é ser uma pessoa socialmente aceitável (um homosociales).
Passo, então, a apresentar os conceitos:
1. Identidade de Gênero ou apenas Gênero – diferente do que ocorre no patriarcalismo que entende ser determinantes os três termos apresentados, os estudos decorrentes dos movimentos de contestação desta superestrutura social, questionam e atacam frontalmente essa ideologia, afirmando ser este um constructo social, quer dizer, não é natural, é construído pela sociedade. Isto é, se ensina, nem sempre de forma formal, que determinado padrões sociais-econômicos-culturais são o correto e certa moralidade é a aceitável.
O ser humano nasce literalmente como um papel em branco onde as coisas são escritas e acumuladas para formar ao final uma espécie adulta, já formada. Crianças não tem noção do que é certo ou errado, de como se faz as coisas, nem mesmo o alimentar-se é um processo tão natural, muitos bebês têm que serem ensinados para aprender a sugar o peito da mãe e assim aprender a se alimentar. Se nem coisas biológicas são nativas, quanto mais padrões e comportamentos morais, culturais, sociais e econômicos.
Assim, o entendimento, é que o ser homem ou mulher, os papeis em si, são produzidos pela própria sociedade e variam no tempo e no espaço. Em pleno século 21, temos diversos modelos do que é ser homem e mulher, a depender da sociedade e do lugar. Há variações inclusive no mesmo lugar, bastando alterar o tempo em que se está.
Na igreja evangélica brasileira, há um simples exemplo, de como um grupo social se altera em padrões ao longo do tempo. Me lembro que há cerca de 4 décadas atrás haviam uma discussão em muitas denominações evangélicas a respeito de se “podia ou não bater palmas durante o culto” e hoje, praticamente, quase todas as denominações evangélicas brasileira o fazem sem que isso seja um escândalo. Este exemplo, é aplicável para todas as demais relações sociais de uma sociedade. O que era antes não necessariamente o é agora e muito menos o será no futuro. É, assim, que os humanos fazem desde que nos demos a atender como gente.
Por fim, apresentamos a ideia de que nem sempre a pessoa consegue se identificar, em seu gênero, com o sexo biológico em que se nasceu. Já foi exaustivamente estudado desde os anos 60 do século passado. Assim, se tem uma pessoa cisgênera (aquela que o gênero coaduna com o sexo biológico), a transgênera (aquela que o gênero diverge do sexo biológico) e diversos outros gêneros já descobertos: não binários, gênero fluídos, andrógenos, etc.
2. Sexo Biológico – é a característica fisiológica e anatômica do corpo humano, havendo uma lógica trinária: macho, fêmea e interssexo (quando o corpo apresenta características dos dois sexos). Isto é determinado ao nascimento e é, até onde sabemos, imutável.
3. Orientação sexual – é como o corpo organiza o sistema afetivossexual da pessoa. Diz respeito a por qual pessoas o indivíduo se atrai. Pelo sistema patriarcal a orientação sexual é restringida à apenas uma: a heterossexualidade compulsória. Mas, socialmente e cientificamente falando, há diversas orientações já descobertas e estudadas desde o século XIX. Além da heterossexualidade (atração afetivossexual pelo sexo e/ou gênero que representa uma oposição ao seu próprio), homossexualidade (atração afetivossexual por pessoas que apresentam o mesmo sexo ou gênero), bissexualidade (atração afetivossexual por mais de um sexo ou gênero com algum grau de indiferença em suas preferências), há ainda diversas outras orientações sexuais: pansexuais, assexuais, etc.
Isto tudo diverge radicalmente com a superestrutura do patriarcalismo. Já que nesta estrutura qualquer outra forma que divirja do nascimento biológico determinista aplicado ao gênero e à orientação sexual é inaceitável. Numa sociedade patriarcal não há espaço para intersexuais (sexo biológico), homossexuais, bissexuais e outras orientações sexuais, nem para outros gêneros que não o de homem e de mulher (e este, subjugado).
Antes da descoberta de toda essa variedade humana (do seculo XIX para cá), as pessoas que não se encaixavam no padrão da sociedade patriarcal eram obrigados a se enquadrar ou, se eram rebeldes, fortemente atacados com violências e colocados no lugar que a sociedade considerava adequado aos “desviantes” (prisão, morte, chicotadas, etc).
III. O Monoteísmo Judaico-Cristão
Para que efetivamente entrássemos no tema do estudo, precisei fazer esclarecimentos a respeito do patriarcalismo e dos conceitos de gênero, sexo biológico e orientação sexual, para que pudéssemos entender a questão da identidade de gênero aplicada a Deus.
O primeiro ponto que você precisa entender é que as sociedades humanas, ao longo da história, no seu tratamento para com a religião não raramente dotou suas divindades de características humanas, o chamado antropomorfismo. E na bíblia, o texto sagrado cristão, há também uma forte influência desta característica. Não é de se admirar que “Deus manda matar”, que “Deus se ira”, etc.
Vou tentar demonstrar pela própria Bíblia que este pensamento não é uma revelação da divindade, mas o entendimento que a sociedade patriarcal tem a respeito dele – vou fazer um parada aqui para explicar que lamento as normas do português que também sofrem consequência do patriarcalismo, e não tem nenhum pronome nativamente neutro que pudesse usar aqui para me referir à divindade, nem achei adequado tomar emprestado algumas das diversas propostas de sistemas de escrita neutros utilizado para se referir à comunidade não binária –.
1. Por que Deus não é tratado no feminino? E por que ele é tratado no masculino?
Deus não poderia ser mulher, porque este gênero está numa condição de inferioridade e domínio do homem. A sociedade hebreia e judeia era de matriz patriarcal. Por ser monoteísta não havia espaço para uma deidade feminina.
Deus é tratado como homem, em todos sentidos, porque uma sociedade patriarcal é incapaz de aceitar a possibilidade de um divindade feminina que pudesse ser adorada, onde homens se sujeitassem à ela. Esta ideia quebraria todo o sistema de domínio masculino construído à força (com muitas violências).
Veja que nada disto está escrito nas escrituras sagradas. Então, se não recorrermos ao que apresentei nos pontos I e II, você não consegue compreender adequadamente. É só a partir daí que é possível entender por que Deus é citado no masculino.
2. O que realmente a bíblia diz a respeito da identidade de gênero da divindade
Este exercício exige de nós que aprendamos a separar o que é a mensagem sociocultural do texto, e portanto, preso ao tempo e ao espaço, do que é a mensagem limpa a respeito da divindade. Este é o exercício que tento aplicar ao máximo ao interpretar o texto bíblico.
Se você fez os estudos de 1 ao 7 (ciclo 1 do Projeto Casa Mirfe), você já sabe que utilizo majoritariamente o método histórico-crítico adaptado com fórmula hermenêutico-exegética, isto é a maneira metodológica como interpreto os textos bíblicos e não irei retomá-la nos próximos ciclos de estudos do projeto, mas que estão sendo utilizados mesmo que não o diga de forma explícita.
Assim, passamos ao que diz as escrituras:
Deus é espírito – Deus é Espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade (João 4:24).
Deus é transcendental e imanente – Na sua mão está a vida de todos os seres vivos e o espírito de todo o gênero humano (Jó 12:10) e porque os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, e os caminhos de vocês não são os meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos, e os meus pensamentos são mais altos do que os pensamentos de vocês (Isaías 55: 8-9).
A consequência dessas duas características é que Deus não pode ser amoldado aos padrões humanos, quer dizer que a ideia de antromorfização dele é incoerente com o que ele é. Espírito não tem sexo, não tem gênero, não tem orientação sexual. Ele é o criador da matéria e subsiste fora dela. Não é completamente compreensível aos olhos humanos nem nunca o será.
Deus não tem um corpo definido – Um espírito não tem carne nem ossos (Lucas 24:39) e ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação (Colossenses 1:15). Veja que isto coaduna com o fato da divindade ser ela mesma um espírito e ser algo invisível e sem corpo.
Deus não tem gênero, nem sexo e muito menos orientação sexual – o profeta Moisés quando foi chamado para o seu ministério, questionou quem o chamava, a resposta foi “Eu Sou o Que Sou” (Êxodo 3:14) dando a entender que simplesmente existia, não há aí nenhum indicação se era pra ser tratado no masculino ou no feminino ou em ambos.
Uma vez que Deus é espírito, transcendental, imanente, invisível e sem corpo e somente seres materiais e corpóreos tem sexo biológico, e daí poderem ter um gênero e uma orientação sexual, é que não é possível atrelá-lo há algum padrão humano. Deus é assim, neutro em todos os sentidos. Se formos referenciá-lo em linguagem e respeito da melhor forma possível seria designá-lo com pronomes de gênero neutro.
IV. Conclusões
A divindade cristã, isto é, Deus, é um ser cuja existência foge da compreensão humana (transcendência e imanência) e não pode ter gênero porque é ele em si o criador da matéria. Não pode ter sexo biológico porque não tem um corpo, e assim não poderia ter um gênero.
É o patriarcalismo que faz com que Deus seja representado como homem ou no masculino. Mas, mesmo nessas culturas o entendimento de alguns pais da igreja primitiva divergiam disto. Clemente (séc. II da e.C.), dizia: “Em sua essência inefável, ele é pai; em sua compaixão para conosco, ele se tornou mãe. O pai, amando, torna-se feminino”, apresentando sua característica que extrapola a noção binária do sexo biológico e do gênero. E é isto mesmo, Deus não pode ser colocado numa limitação humana corpórea.
Ele também não pode ser heterossexual, tão pouco homossexual, bissexual ou qualquer outra orientação sexual, porque isto tem a ver a como nós seres humanos nos relacionamos afetivossexualmente uns com os outros.
É possível chegar à conclusão também que este Deus sem gênero, sem sexo biológico e sem orientação sexual, não poderia estar tão preocupado com isso como muitos evangélicos pensam. Todas essas características nascem decorrentes da matéria (do corpo) e deixam de existir com ela (a morte), e não tem efeito sobre o espírito e alma que não estão presos a tais paradigmas.
Para ele, nada disto nos distingue. Não há diferenciação entre as pessoas (Gálatas 3:28, Romanos 3:22 e 10:22). Ele está sempre de braços abertos para receber quem quer aproximar dele, seja qual sexo biológico for, qualquer que seja o seu gênero e qualquer que seja a sua orientação sexual.
Ao final, trago algumas preocupações decorrentes da visão majoritária da igreja evangélica conservadora. Esta igreja se funda a partir da superestrutura do patriarcalismo, e por isso, é importante que Deus seja referido no masculino, dando a entender que seja caracterizado como homem (macho), para que todas as características moralistas desta estrutura sejam reproduzidas na igreja e por meio dela. Extrapolando as paredes de seus templos e forçando aos demais seus modelos de vida, que sobre um olhar racional e de contextualização das escrituras é desmontado.
Me espanta ver que as verdades do evangelho entram em choque com boa parte do que pregam e professam. Os ensinos do Cristo focam na igualdade entre as pessoas (o patriarcalismo foca na desigualdade), focam na paz (o patriarcalismo foca no conflito), focam na não-violência (o patriarcalismo foca nas violências) e assim vai. Praticamente quase tudo que o patriarcalismo defende encontra algum paradigma das palavras de Cristo em oposição. O que me leva a perguntar por que uma igreja, que diz seguir o Cristo, prefere adotar uma ideologia que contraria suas palavras? Pra mim, sobram duas respostas plausíveis: ou estão enfeitiçados (Gálatas 3:1) ou estão agindo de má-fé. Tirem suas próprias conclusões.
Então, para mim, não é a bíblia ou o texto sagrado a questão, mas a ideologia patriarcal transvestida de crença religiosa a grande questão a ser combatida. Oro para que Deus nos ilumine em tempos onde a racionalidade que provém dele está em escasso uso.
Espero que o Deus de paz que excede todo entendimento esteja com cada um de vocês. Deus os abençoe ricamente! Até o nosso próximo estudo.
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