ESTUDO 5
por Messias R. Medeiros
Olá, bem-vindo ao estudo 5, hoje continuaremos a interpretar os textos que são usados pelos conservadores para condenar qualquer prática não cisheteronormativa.
Iniciaremos a abordagem dos textos que foram classificados no estudo 1 como problemáticos. Focaremos apenas na análise semântica dos textos.
I – Apresentação de 1 Coríntios 6:9-10 e 1 Timóteo 1:10
O propósito aqui é discutir a própria semântica das palavras originais, ou seja, qual o significado delas, antes mesmo da interpretação do que os textos querem dizer.
Utilizarei como fonte do original o Textus Receptus (o mais conservador; vou utilizá-lo por ser o mais usado por fundamentalistas) do novo testamento em grego koinê e diversas versões e traduções que sempre indicarei na própria citação.
Começaremos por apresentar o texto de 1 Coríntios 6: 9-10 em diversas versões em português para ver como são traduzidos os termos que discutiremos:
1.
Não
sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus?
Não
erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem
os efeminados,
nem
os sodomitas,
nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os
maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus
(trad.
Almeida Corrigida Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil);
2. Ou vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não se enganem: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem afeminados, nem homossexuais, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o Reino de Deus (trad. Nova Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil);
3. Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus (trad. Nova Versão Internacional da Sociedade Bíblica Internacional);
4. Vocês não sabem que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não se enganem: aqueles que se envolvem em imoralidade sexual, adoram ídolos, cometem adultério, se entregam a práticas homossexuais, são ladrões, avarentos, bêbados, insultam as pessoas ou exploram os outros não herdarão o reino de Deus (trad. Nova Versão Transformadora da Editora Mundo Cristão);
5. Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus? Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus (trad. Ave Maria da Editora Ave Maria)
Utilizei 4 versões contemporâneas protestantes (evangélicas) e 1 tradução contemporânea romana (católica). Para deixar claro como elas traduzem os termos em controvérsia. Apresento a agora a versão original no Textus Receptus:
η ουκ οιδατε οτι αδικοι βασιλειαν θεου ου κληρονομησουσιν μη πλανασθε ουτε πορνοι ουτε ειδωλολατραι ουτε μοιχοι ουτε μαλακοι ουτε αρσενοκοιται ουτε κλεπται ουτε πλεονεκται ουτε μεθυσοι ου λοιδοροι ουχ αρπαγες βασιλειαν θεου ου κληρονομησουσιν (em grego koinê)
e ouk oidate hoti adikoi basileian Theou ou kleronomesousin me planasthe oute pornoi oute eidololatrai oute moichoi oute malakoi oute arsenokoitai oute kleptai oute pleonektai oute methysoi ou loidoroi ouch harpages basileian Theou ou kleronomesousin (transliterado para os caracteres latinos)
E apresentamos também o texto de 1 Timóteo 1: 10, também em diversas versões em português bem como no original no Textus Receptus:
1. Para os devassos, para os sodomitas, para os roubadores de homens, para os mentirosos, para os perjuros, e para o que for contrário à sã doutrina (trad. Almeida Corrigida Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil);
2. Para os que praticam a imoralidade, para os que se entregam a práticas homossexuais, para os sequestradores, para os mentirosos, para os que fazem juramento falso e para tudo o que se opõe à sã doutrina (trad. Nova Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil);
3. Para os que praticam imoralidade sexual e os homossexuais, para os seqüestradores, para os mentirosos e os que juram falsamente; e para todo aquele que se opõe à sã doutrina (trad. Nova Versão Internacional da Sociedade Bíblica Internacional);
4. Para os que vivem na imoralidade sexual, para os que praticam a homossexualidade, e também para os sequestradores, os mentirosos, os que juram falsamente ou que fazem qualquer outra coisa que contradiga o ensino verdadeiro (trad. Nova Versão Transformadora da Editora Mundo Cristão);
5. os impudicos, os infames, os traficantes de homens, os mentirosos, os perjuros e tudo o que se opõe à sã doutrina (trad. Ave Maria da Editora Ave Maria)
Assim como fiz no texto de 1 Coríntios, mantive as 4 versões contemporâneas protestantes e 1 católica, para o texto de 1 Timóteo. Apresento, agora, o texto original:
πορνοις αρσενοκοιταις ανδραποδισταις ψευσταις επιορκοις και ει τι ετερον τη υγιαινουση διδασκαλια αντικειται (grego koinê)
pronois arsenokoitais andrapodistais pheustais epiorkois kai ei ti eteron te ugiainouse didaskalia antikeitai (transliterado para os caracteres latinos)
II – A Análise Semântica e Crítica
Em ambos os textos, os problemas, então, vêm da tradução dos termos em negrito: arsenokoitai e malakoi. Há também um discussão em torno do termo pornoi, que abordaremos rapidamente apenas para contextualização.
A palavra grega pornoi é comumente mal traduzida, principalmente quando é versada por “imoralidade sexual”, porque seu sentindo mais comum é de “prostituição”, e não se refere a um tipo de imoralidade geral como as traduções parecem induzir, mas particular. Mas, os tradutores modernos de vertente conservadora e ortodoxa insistem nesta forma porque isto favorece a hermenêutica deles.
Fechado esse adendo, passamos ao entendimento semântico das palavras citadas e destacadas acima.
A palavra grega arsenokoitai é um neologismo criado por Paulo (em 1 Coríntios) e utilizada pelo autor desconhecido de 1 Timóteo, posteriormente. Há uma discussão muito forte em torno do seu significado por não ter referências de seus uso fora destes textos. Porém, há uma certa concordância que se refiram a junção das palavras arsenos (macho) e koités (fazer sexo, se deitar com) de Levítico 18:22 (já analisamos este texto em estudos anteriores) na versão que Paulo usava que era a Septuaginta, a versão grega dos escritos judeus. Portanto, o sentindo mais simples é o de que ela se refere a machos humanos que fazem sexo com outros machos humanos (o que chamamos de homoerotismo).
Então, neste sentindo o significado pareceria claro, certo? Parece claro que os irmãos de Corínto (para quem foi destinada a epístola) e os destinatários de 1 Timóteo, entendiam o significado de arsenokoitai facilmente dentro de um rol. A questão que discute, portanto, não é se essa palavra tem ou não relação com o homoerotismo do século I d.C., mas se ela se aplicava irrestritamente a qualquer situação ou a uma questão específica.
A semântica em si não nos dá um certa segurança de sua abrangência, então, recorremos a entender como os tradutores ao longo do tempo o faziam. Vamos nos a ter as versões em português.
Traduções Contemporâneas para arsenokoitai: sodomitas (v. Almeida Corrigida Fiel), homossexuais (v. Nova Almeida Atualizada), homossexuais ativos (v. Nova Versão Internacional), praticantes de homossexualidade (v. Nova Versão Transformadora) e devassos (v. Ave Maria).
Tradução antiga: somitigo (v. Almeida de 1681), os que com machos se deitam (Almeida de 1819); os que com machos se deitam (Almeida de 1848) e sodomitas (Almeida de 1903).
Ao que parece a tradução destes termos é um tanto quanto insatisfatória, já que a palavra original é aplicada dentro de um contexto específico que não nos permite traduzí-la por “homossexuais”, já que ela, mesmo sendo conservadores, se aplicaria apenas as relações homoeróticas masculinas. E juntamente com malakoi tem seu sentido variando de acordo com os preconceitos da época. Já que não podemos traduzir a ambos dissociadamente.
Malakoi é comumente traduzido contemporaneamente como “homossexual passivo” e “afeminado”. Mas, historicamente, já foi traduzido como “depravados” e apenas “imorais”.
Ao final, ficamos que ambas as palavras não são facilmente traduzíveis, por não ter respectivos termos na modernidade. Arsenokoitai era a forma que os judeus da época de Paulo designava uma série de práticas homoeróticas, geralmente que degradavam a dignidade da pessoa humana. Era comum na sociedade grego-romana de então, se comprar e manter escravos sexuais masculinos para o deleite de seus senhores, já que o pensamento de então, ter relações sexuais não reprodutivas era ilícito com mulheres (contra a natureza), bem como era lícito fazer sexo com homens adolescentes (jamais com homens adultos e cidadãos). O conceito parece estar o tempo todo atrelado com a fragilidade de quem recebesse o sexo homoeróticos com penetração, seja por obrigação do dono, seja em troca de dinheiro seja no âmbito da pedarestia.
Não é possível, portanto, se dizer que arsenokoitai significa homoerotismo de qualquer gênero e irrestrito, mas a casos particulares. Dizia mais respeito a subjugação do outro do que necessariamente ao sexo feito entre homens.
Já a palavra malakoi que significa “macio, mole” era substantivado para se referir a homem que se colocavam no lugar de uma mulher, como se tal fosse. Era indigno a um homem, para a época, se rebaixar a qualidade de um escravo (se subjugando a ser passivo numa relação homoerótica) ou de uma mulher (permitindo que ela o dominasse na relação sexual). Veja que mesmo em relações heteroeróticas, se o homem se deixasse dominar pela mulher, ele seria considerado um malakoi.
Torna-se um tanto quanto complicado dizer que esta palavra se refira a homossexual passivo, e até mesmo, afeminado é um termo equivocado. Já que tem mais a ver com o sentindo de se subjugar a uma relação não condizendo com sua posição social.
Veja que ambos os conceitos tem relação direta com a cultura de sua época. Paulo estava falando para a igreja de corínto acostumada com essas práticas que degradavam a dignidade da outra pessoa. Fazer um homem adulto se colocar numa condição de mulher numa relação sexual era a morte civil e cidadão da pessoa. E isto reflete o caráter da cultura patriarcal de então. O texto de 1 Timóteo, colabora com esse entendimento quando coloca arsenokoitai num rol com sequestradores, dos que prestam falso testemunhos, homicidas, etc.
Modernamente, essas questões foram majoritariamente suplantadas. O sujeito homossexual não tem sua vida atrelada a um comportamento religioso ou a um comportamento de subjugação social. Não há que se falar em subjugação por ser escravo ou por se vender numa relação de degradação humana.
Portanto, qualquer tradução que der a entender que os textos de 1 Coríntios e 1 Timóteo se referiram a qualquer prática homoerótica, estão praticando obviamente um anacronismo histórico. Não há na realidade presente qualquer maneira de entender de outra forma, sem que incorra em descontextualização, conservadorismo raso e má vontade intelectual. Forçando um bocado, no mínimo é necessário reconhecer que tais textos são polêmicos e de difícil tradução.
Não estamos mais no século I d.C. e nunca vamos conseguir entender plenamente o que aquela realidade exprimia, mas podemos dizer, com certa precisão, que a condenação a homossexualidade, nos termos da atualidade, é meramente exercício de preconceitos de uma sociedade e pessoas conservadoras e nada tem a ver com espiritualidade e teologia de fato. Assim o pensam, porque antes o eram preconceituosos e se justificam na bíblia, para favorecer seus próprios preconceitos.
Ficamos por aqui neste estudo 5, e prosseguimos no próximo estudo. Até lá!
Que o Senhor Jesus esteja com cada um de nós, hoje e para sempre! A Ele seja glória para sempre! Amém!