domingo, 23 de agosto de 2020

Estudo 8 - Ciclo 2 - Casa Mirfe

 


ESTUDO 8


 

A Identidade de Gênero de Deus

 

por Messias R. Medeiros



A questão que me leva a trazer esse tema a respeito da identidade de gênero de Deus, se deve ao fato de que a igreja continua a se referir a Deus no masculino. Mas, por quê? E qual impacto isto tem?

Mas, antes de entrarmos nessa discussão é necessário entender primeiro algumas coisas.


I. Patriarcalismo


O patriarcalismo pode ser definido como sendo uma estrutura social caracterizada pela noção imposta institucionalmente dos homens sobre as mulheres e filhos, que são aplicadas no ambiente famíliar (família tradicional), social (toda a sociedade), econômico (produção e consumo), político e de legislação (ocupação dos espaços institucionais do estado) e cultural. Isto é, toda a sociedade é estruturalmente afetada por esta forma de pensamento e prática de vida.

A regra é a ideia da dominação dos homens sobre mulheres e crianças por meio da violência. Veja, para que o homem alcance o seu papel socialmente determinado de dominação, é necessário usar algum tipo de violência (real, verbal ou outras formas simbólicas) para conseguir fazer sua “autoridade” ser efetivada. E, por isso, ao sinal de qualquer tentativa de subverter essa ordem é prontamente rechaçada com mais violência. Essa estrutura é reproduzida de geração à geração, subvertendo a noção do que é real do que é criado socialmente por um grupo dominante.

É somente a partir da emergência do movimento feminista ao final do século XIX que esta noção patriarcal começa a ser questionada. Até, então, as mulheres reproduziam o pensamento patriarcal como única alternativa social possível. Esse movimento feminista é que alterará profundamente ao longo de dezenas de anos, no ocidente, a noção do que seria uma superestrutura social, fazendo nascer uma alternativa ao modelo patriarcal até então, uno, o do matriarcalismo que se contrapõe ao patriarcalismo.

Todavia, o matriarcalismo não tem por objetivo inverter o sinal em relação ao modelo patriarcal, mas extinguir a ideia de domínio dos homens e seu recurso de manutenção (a violência). Assim, se quer, no matriarcalismo, que todas as pessoas tenham pé de igualdade e que ninguém precise dominar ninguém, mas viver socialmente em um lugar de equidade e igualdade, independente do sexo biológico pelo qual se nasce. Assim, é a ideia de correção da superestrutura e não de mudança de sinal.

É importante ressaltar, ao final, que essa superestrutura social chamada patriarcalismo está presente na sociedade humana, das maiores às menores, desde a antiguidade. E, no nosso caso, a Bíblia quanto produto de uma sociedade patriarcal, como o era a sociedade hebraico-judaica, também não fica atrás. Todas as estruturas patriarcais estão ali presentes em falas, leis, regulamentos e todo tipo de moralidade dela advinda – já expliquei no ciclo de estudos anteriores, do estudo 1 ao 7, que a Bíblia é, em alguma medida, fruto da sociedade onde estava inserida e seria um equívoco racional, negá-la por diversos motivos já expostos –. Assim, é necessário que aquele que se atreve a entender o que ali se contem consiga identificar e isolar tais influências da melhor forma que lhe for possível.


II. Identidade de Gênero, Sexo Biológico e Orientação Sexual


Não tenho, por propósito, neste estudo discorrer exaustivamente sobre os conceitos de identidade de gênero, sexo biológico e orientação sexual. Parto do princípio de explicar o que é cada um apenas e quem quiser se aprofundar poderá fazê-lo nos diversos meios que a internet disponibiliza.

Um primeiro ponto a ser mencionado é que na sociedade patriarcal existe um indubitável correlação entre estes termos. A ideologia patriarcal toma o sexo biológico como determinante da identidade de gênero e da orientação sexual das pessoas. Assim, se alguém nasce com sexo biológico feminino, o gênero definido é o de mulher, a orientação sexual é heterossexual, e isto se repete para quem nasce com o sexo biológico masculino. É, portanto, uma lógica exclusivamente binária. E isto é determinante e impactará até o fim da vida da pessoa. O problema neste modelo é quando a pessoa não consegue se encaixar na ideia patriarcal do que é ser uma pessoa socialmente aceitável (um homosociales).

Passo, então, a apresentar os conceitos:

1. Identidade de Gênero ou apenas Gênero – diferente do que ocorre no patriarcalismo que entende ser determinantes os três termos apresentados, os estudos decorrentes dos movimentos de contestação desta superestrutura social, questionam e atacam frontalmente essa ideologia, afirmando ser este um constructo social, quer dizer, não é natural, é construído pela sociedade. Isto é, se ensina, nem sempre de forma formal, que determinado padrões sociais-econômicos-culturais são o correto e certa moralidade é a aceitável.

O ser humano nasce literalmente como um papel em branco onde as coisas são escritas e acumuladas para formar ao final uma espécie adulta, já formada. Crianças não tem noção do que é certo ou errado, de como se faz as coisas, nem mesmo o alimentar-se é um processo tão natural, muitos bebês têm que serem ensinados para aprender a sugar o peito da mãe e assim aprender a se alimentar. Se nem coisas biológicas são nativas, quanto mais padrões e comportamentos morais, culturais, sociais e econômicos.

Assim, o entendimento, é que o ser homem ou mulher, os papeis em si, são produzidos pela própria sociedade e variam no tempo e no espaço. Em pleno século 21, temos diversos modelos do que é ser homem e mulher, a depender da sociedade e do lugar. Há variações inclusive no mesmo lugar, bastando alterar o tempo em que se está.

Na igreja evangélica brasileira, há um simples exemplo, de como um grupo social se altera em padrões ao longo do tempo. Me lembro que há cerca de 4 décadas atrás haviam uma discussão em muitas denominações evangélicas a respeito de se “podia ou não bater palmas durante o culto” e hoje, praticamente, quase todas as denominações evangélicas brasileira o fazem sem que isso seja um escândalo. Este exemplo, é aplicável para todas as demais relações sociais de uma sociedade. O que era antes não necessariamente o é agora e muito menos o será no futuro. É, assim, que os humanos fazem desde que nos demos a atender como gente.

Por fim, apresentamos a ideia de que nem sempre a pessoa consegue se identificar, em seu gênero, com o sexo biológico em que se nasceu. Já foi exaustivamente estudado desde os anos 60 do século passado. Assim, se tem uma pessoa cisgênera (aquela que o gênero coaduna com o sexo biológico), a transgênera (aquela que o gênero diverge do sexo biológico) e diversos outros gêneros já descobertos: não binários, gênero fluídos, andrógenos, etc.

2. Sexo Biológico – é a característica fisiológica e anatômica do corpo humano, havendo uma lógica trinária: macho, fêmea e interssexo (quando o corpo apresenta características dos dois sexos). Isto é determinado ao nascimento e é, até onde sabemos, imutável.

3. Orientação sexual – é como o corpo organiza o sistema afetivossexual da pessoa. Diz respeito a por qual pessoas o indivíduo se atrai. Pelo sistema patriarcal a orientação sexual é restringida à apenas uma: a heterossexualidade compulsória. Mas, socialmente e cientificamente falando, há diversas orientações já descobertas e estudadas desde o século XIX. Além da heterossexualidade (atração afetivossexual pelo sexo e/ou gênero que representa uma oposição ao seu próprio), homossexualidade (atração afetivossexual por pessoas que apresentam o mesmo sexo ou gênero), bissexualidade (atração afetivossexual por mais de um sexo ou gênero com algum grau de indiferença em suas preferências), há ainda diversas outras orientações sexuais: pansexuais, assexuais, etc.

Isto tudo diverge radicalmente com a superestrutura do patriarcalismo. Já que nesta estrutura qualquer outra forma que divirja do nascimento biológico determinista aplicado ao gênero e à orientação sexual é inaceitável. Numa sociedade patriarcal não há espaço para intersexuais (sexo biológico), homossexuais, bissexuais e outras orientações sexuais, nem para outros gêneros que não o de homem e de mulher (e este, subjugado).

Antes da descoberta de toda essa variedade humana (do seculo XIX para cá), as pessoas que não se encaixavam no padrão da sociedade patriarcal eram obrigados a se enquadrar ou, se eram rebeldes, fortemente atacados com violências e colocados no lugar que a sociedade considerava adequado aos “desviantes” (prisão, morte, chicotadas, etc).


III. O Monoteísmo Judaico-Cristão


Para que efetivamente entrássemos no tema do estudo, precisei fazer esclarecimentos a respeito do patriarcalismo e dos conceitos de gênero, sexo biológico e orientação sexual, para que pudéssemos entender a questão da identidade de gênero aplicada a Deus.

O primeiro ponto que você precisa entender é que as sociedades humanas, ao longo da história, no seu tratamento para com a religião não raramente dotou suas divindades de características humanas, o chamado antropomorfismo. E na bíblia, o texto sagrado cristão, há também uma forte influência desta característica. Não é de se admirar que “Deus manda matar”, que “Deus se ira”, etc.

Vou tentar demonstrar pela própria Bíblia que este pensamento não é uma revelação da divindade, mas o entendimento que a sociedade patriarcal tem a respeito dele – vou fazer um parada aqui para explicar que lamento as normas do português que também sofrem consequência do patriarcalismo, e não tem nenhum pronome nativamente neutro que pudesse usar aqui para me referir à divindade, nem achei adequado tomar emprestado algumas das diversas propostas de sistemas de escrita neutros utilizado para se referir à comunidade não binária –.


1. Por que Deus não é tratado no feminino? E por que ele é tratado no masculino?


Deus não poderia ser mulher, porque este gênero está numa condição de inferioridade e domínio do homem. A sociedade hebreia e judeia era de matriz patriarcal. Por ser monoteísta não havia espaço para uma deidade feminina.

Deus é tratado como homem, em todos sentidos, porque uma sociedade patriarcal é incapaz de aceitar a possibilidade de um divindade feminina que pudesse ser adorada, onde homens se sujeitassem à ela. Esta ideia quebraria todo o sistema de domínio masculino construído à força (com muitas violências).

Veja que nada disto está escrito nas escrituras sagradas. Então, se não recorrermos ao que apresentei nos pontos I e II, você não consegue compreender adequadamente. É só a partir daí que é possível entender por que Deus é citado no masculino.


2. O que realmente a bíblia diz a respeito da identidade de gênero da divindade


Este exercício exige de nós que aprendamos a separar o que é a mensagem sociocultural do texto, e portanto, preso ao tempo e ao espaço, do que é a mensagem limpa a respeito da divindade. Este é o exercício que tento aplicar ao máximo ao interpretar o texto bíblico.

Se você fez os estudos de 1 ao 7 (ciclo 1 do Projeto Casa Mirfe), você já sabe que utilizo majoritariamente o método histórico-crítico adaptado com fórmula hermenêutico-exegética, isto é a maneira metodológica como interpreto os textos bíblicos e não irei retomá-la nos próximos ciclos de estudos do projeto, mas que estão sendo utilizados mesmo que não o diga de forma explícita.

Assim, passamos ao que diz as escrituras:

Deus é espíritoDeus é Espírito, e é necessário que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade (João 4:24).

Deus é transcendental e imanente Na sua mão está a vida de todos os seres vivos e o espírito de todo o gênero humano (Jó 12:10) e porque os meus pensamentos não são os pensamentos de vocês, e os caminhos de vocês não são os meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como os céus são mais altos do que a terra, assim os meus caminhos são mais altos do que os seus caminhos, e os meus pensamentos são mais altos do que os pensamentos de vocês (Isaías 55: 8-9).

A consequência dessas duas características é que Deus não pode ser amoldado aos padrões humanos, quer dizer que a ideia de antromorfização dele é incoerente com o que ele é. Espírito não tem sexo, não tem gênero, não tem orientação sexual. Ele é o criador da matéria e subsiste fora dela. Não é completamente compreensível aos olhos humanos nem nunca o será.

Deus não tem um corpo definido – Um espírito não tem carne nem ossos (Lucas 24:39) e ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação (Colossenses 1:15). Veja que isto coaduna com o fato da divindade ser ela mesma um espírito e ser algo invisível e sem corpo.

Deus não tem gênero, nem sexo e muito menos orientação sexual – o profeta Moisés quando foi chamado para o seu ministério, questionou quem o chamava, a resposta foi “Eu Sou o Que Sou” (Êxodo 3:14) dando a entender que simplesmente existia, não há aí nenhum indicação se era pra ser tratado no masculino ou no feminino ou em ambos.

Uma vez que Deus é espírito, transcendental, imanente, invisível e sem corpo e somente seres materiais e corpóreos tem sexo biológico, e daí poderem ter um gênero e uma orientação sexual, é que não é possível atrelá-lo há algum padrão humano. Deus é assim, neutro em todos os sentidos. Se formos referenciá-lo em linguagem e respeito da melhor forma possível seria designá-lo com pronomes de gênero neutro.


IV. Conclusões


A divindade cristã, isto é, Deus, é um ser cuja existência foge da compreensão humana (transcendência e imanência) e não pode ter gênero porque é ele em si o criador da matéria. Não pode ter sexo biológico porque não tem um corpo, e assim não poderia ter um gênero.

É o patriarcalismo que faz com que Deus seja representado como homem ou no masculino. Mas, mesmo nessas culturas o entendimento de alguns pais da igreja primitiva divergiam disto. Clemente (séc. II da e.C.), dizia: “Em sua essência inefável, ele é pai; em sua compaixão para conosco, ele se tornou mãe. O pai, amando, torna-se feminino”, apresentando sua característica que extrapola a noção binária do sexo biológico e do gênero. E é isto mesmo, Deus não pode ser colocado numa limitação humana corpórea.

Ele também não pode ser heterossexual, tão pouco homossexual, bissexual ou qualquer outra orientação sexual, porque isto tem a ver a como nós seres humanos nos relacionamos afetivossexualmente uns com os outros.

É possível chegar à conclusão também que este Deus sem gênero, sem sexo biológico e sem orientação sexual, não poderia estar tão preocupado com isso como muitos evangélicos pensam. Todas essas características nascem decorrentes da matéria (do corpo) e deixam de existir com ela (a morte), e não tem efeito sobre o espírito e alma que não estão presos a tais paradigmas.

Para ele, nada disto nos distingue. Não há diferenciação entre as pessoas (Gálatas 3:28, Romanos 3:22 e 10:22). Ele está sempre de braços abertos para receber quem quer aproximar dele, seja qual sexo biológico for, qualquer que seja o seu gênero e qualquer que seja a sua orientação sexual.

Ao final, trago algumas preocupações decorrentes da visão majoritária da igreja evangélica conservadora. Esta igreja se funda a partir da superestrutura do patriarcalismo, e por isso, é importante que Deus seja referido no masculino, dando a entender que seja caracterizado como homem (macho), para que todas as características moralistas desta estrutura sejam reproduzidas na igreja e por meio dela. Extrapolando as paredes de seus templos e forçando aos demais seus modelos de vida, que sobre um olhar racional e de contextualização das escrituras é desmontado.

Me espanta ver que as verdades do evangelho entram em choque com boa parte do que pregam e professam. Os ensinos do Cristo focam na igualdade entre as pessoas (o patriarcalismo foca na desigualdade), focam na paz (o patriarcalismo foca no conflito), focam na não-violência (o patriarcalismo foca nas violências) e assim vai. Praticamente quase tudo que o patriarcalismo defende encontra algum paradigma das palavras de Cristo em oposição. O que me leva a perguntar por que uma igreja, que diz seguir o Cristo, prefere adotar uma ideologia que contraria suas palavras? Pra mim, sobram duas respostas plausíveis: ou estão enfeitiçados (Gálatas 3:1) ou estão agindo de má-fé. Tirem suas próprias conclusões.

Então, para mim, não é a bíblia ou o texto sagrado a questão, mas a ideologia patriarcal transvestida de crença religiosa a grande questão a ser combatida. Oro para que Deus nos ilumine em tempos onde a racionalidade que provém dele está em escasso uso.

Espero que o Deus de paz que excede todo entendimento esteja com cada um de vocês. Deus os abençoe ricamente! Até o nosso próximo estudo.

domingo, 26 de julho de 2020

Estudo 6 - Casa Mirfe



ESTUDO 6


por Messias R. Medeiros



Olá, bem-vindo ao estudo 6, hoje continuaremos a interpretar os textos que são usados pelos conservadores para condenar qualquer prática não cisheteronormativa.

No estudo anterior analisamos apenas pela abordagem semântica os textos de 1 Coríntios 6:9-10 e 1 Timóteo 1:10. Neste, abordaremos, em separado, a interpretação seguindo o método histórico-crítico adaptado explanado no estudo 2.

Todos os trechos bíblicos aqui citados em sua versão em português será feito por meio da Nova Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil.


I. Descrição do Texto


Apresento abaixo o texto de 1 Coríntios 6: 9-10:


Ou vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não se enganem: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem afeminados, nem homossexuais, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o Reino de Deus.



II. Definições dos Contextos


É essencial para entendermos e interpretarmos o texto da melhor forma possível, seguindo o método hermenêutico utilizado, que se apresentem as seguintes definições:

1. Contexto Interno Local: 1 Coríntios 5:16:20;

2. Contexto Interno Global: 1 Coríntios 10:7-8, 10:14 (6:12), 10:23-24, 14:34-35;

3. Contexto Externo:

a) o livro de 1 Coríntios é uma epístola escrita ou ditada por Paulo entre 51 e 56 d.C., endereçada à igreja de Corínto. É uma carta de respostas a uma série de problemas enfrentados por aquela comunidade e não segue uma ordem linear nas respostas;

b) tal qual pode ser evidenciado nos estudos anteriores, o pano de fundo cultura pouco se alterou no ambiente do Império Romano. O politeísmo diverso era o praticado e os diversos cultos de festividades e bacanais eram constantemente realizados em datas específicas do ano, a prostituição cultual (sexo ritual) bem como os comportamentos de toevah eram fartamente praticados dentro das muitas religiões praticadas no território, incluindo o culto ao imperador;

c) Corínto era uma cidade grega famosa pela existência de 2 grandes templos pagãos: o de Afrodite (Deus do amor e do sexo) e o de Apolo (Deus da dança, beleza masculina, canto). O templo de Afrodite realizava diversos festivais de fertilidade além da tradicional prostituição cultual ou ritual.


III. Interpretação de 1 Coríntios 6:9-10


O texto em interpretação segue a mesma lógica dos textos anteriores. O pano de fundo religioso é muito semelhante. Politeísta e com práticas cultuais bem similares aos povos antigos ao redor dos hebreus. Agora, muitos povos tremulam sob a bandeira do império romano, onde esses cultos são realizados.

1 Coríntios não segue uma lógica linear, alguns assuntos são tratados parcialmente em algum lugar, continuado em outro e assim sucessivamente. Mas, isto se deve principalmente ao fato da redação levar vários dias para ser feitas e possivelmente em material individualizado e que posteriormente era transformado no rolo que seria enviado na sua forma completa.

A epístola em si é uma das 4 que foram encaminhadas pelo apóstolo Paulo a igreja de Corínto, e traz uma série de respostas a perguntas feitas (levadas por Estéfanas, Fortunato e Acaio – 16:17-18) que preocupavam a liderança da igreja na época. Cabe frizar que o texto bíblico como o conhecemos era inexistente, a igreja dependia das doutrinas orais (dos apóstolos) que era repassadas de líder para líder.

Mais uma vez, como a gente já está cansado de falar nestes estudos há uma atrelação entre porneia (imoralidade sexual), arsenokoitai (homoerotismo ritual) e malakoi (prostituição ritual) com a ideia da idolatria já imensamente referenciada ao longo dos estudos.

O texto traz uma série de questões morais quando ao comportamento que o crente deveria ter em relação à idolatria e se finca, assim, na tradição judaica presente na Torah. Trata das divisões na igreja, da idolatria manifesta na porneia e derivados, de como então o crente enfrenta essas questões (a ideia do casamento como método), os sacrifícios e festas nos templos pagãos, direitos apostolares, regulamentos para o culto cristão, os dons espirituais e a ressurreição.

Na parte que trata da idolatria é que o texto de 1 Coríntios 6:9-10 se encontra, o atrelamento existente entre os três termos gregos citados anteriormente com a ideia de idolatria é evidente e clara. No seu contexto interno, a preocupação de Paulo centra-se no padrão moral mais elevado que a igreja deve ter: para poder julgar os de fora (5:12), de não levar questões ao judiciários quando a celeuma for entre irmãos (6:1), ao invés de ser promotores da justiça os membros da igreja estavam causando injustiças e prejuízos (6:7) e sendo perversos (6:9). E o texto em análise se encaixa nessa ideia de perversidade que ele atrelava a idolatria (10:7-8, 14). Fujam da idolatria. Essa a recomendação.

Por duas vezes em texto relacionados a estas práticas ele diz “tudo é permitido” (6:12 e 10:23), mas nem tudo deveria ser feito, porque não edificava. A ideia aqui é que devemos analisar as coisas que fazemos, principalmente se elas vão retirar da igreja a moral para dizer que determinada prática pagã devia ser abandonada, se os membros da igreja ainda as praticassem? Mais uma vez a questão aqui é como os pagãos viam os cristãos e não o contrário. Se o discurso é se convertam ao único Deus verdadeiro, os seus seguidores não deveriam ter práticas similares, pois estariam exatamente como os pagãos.

O próprio apóstolo Paulo atrela a ideia da imoralidade sexual ao culto pagão (10:8 citando Êxodo 32:6) onde os israelitas fazem um bezerro de ouro no deserto para adorarem: fazem sacrifícios, bebem e comem e se entregam à farra (isto é, um festival pagão).

Por último, pela questão semântica, é pouco provável que o texto de 1 Coríntios 6:9-10 tenha uma referência a ideia de homossexualidade como a conhecemos nos dias atuais. Até mesmo a ideia de homoeroticidade (sexo entre pessoas do mesmo sexo) não é irrestrita nos textos, mas circunscritas ao culto pagão (a idolatria).


Conclusão


Sabemos de antemão que a bíblia em nenhum lugar se referiu à homossexualidade, muito menos as demais formas de orientação sexual e identidade de gênero, porque isto só veio aparecer como conceito no século XIX. Mas a homoeroticidade é captada em poucos versículos dentre as três dezenas de milhares existentes.

Em todas elas a marca é sempre a mesma, a atrelação das práticas sexuais dentro do contexto de culto pagão ou de prostituição ritualística. Mesmo que houvessem práticas extra cultuais, a bíblia nada a elas se refere. Não há citação da pederastia grega, nem mesmo as bebedeiras e festivais particulares de imperadores, proconsules e governadores durante todo o império romano. Parece que essas atividades, que incluíam a homoeroticidade não raras vezes, se quer mereceram o crédito de Paulo por citá-los como pecado, mesmo sendo amplamente conhecido, a tal ponto que o grande imperador Júlio César era conhecido como “homem de todas as mulheres e mulher de todos os homens”, casando diversas vezes e mantendo prostitutos em sua corte para lhe satisfazer.

Em todos os textos analisados até aqui, têm a mesma base e o mesmo contexto citatório: a idolatria e as diversas práticas dela decorrentes, incluindo o caráter irrefreativo do desejo sexual sendo elevado a condição de culto, e entre elas as práticas da homoeroticidade.

É, no mínimo, ignorância a respeito do contexto, alegar que a passagem de 1 Coríntios se referira a homoeroticidade de forma ampla e irrestrita. Elas são circunstanciais e atreladas ao seu tempo.

A pregação do amor a Deus e ao próximo, batia de frente contra as práticas idolátricas da época. Quem ama seu irmão não rouba sua mulher, não o trai, não bebe até perder o controle e faz besteira, não se envolve com mulher casada, não vai para um templo pagão e participa de suas festas usando um prostituto ou prostituta, por exemplos.

A única forma de condenar a homossexualidade, sendo conservador, é ignorar o seu contexto externo e interno. É abrir mão da racionalidade divina. Isolar o texto.



Ficamos por aqui neste estudo 6, e prosseguimos nos próximos estudos com os demais textos arrolados no estudo 1. Até lá!

Que o Senhor Jesus esteja com cada um de nós, hoje e para sempre! A Ele seja glória para sempre! Amém!

domingo, 28 de junho de 2020

Estudo 5 - Casa Mirfe



ESTUDO 5


por Messias R. Medeiros



Olá, bem-vindo ao estudo 5, hoje continuaremos a interpretar os textos que são usados pelos conservadores para condenar qualquer prática não cisheteronormativa.

Iniciaremos a abordagem dos textos que foram classificados no estudo 1 como problemáticos. Focaremos apenas na análise semântica dos textos.


I – Apresentação de 1 Coríntios 6:9-10 e 1 Timóteo 1:10


O propósito aqui é discutir a própria semântica das palavras originais, ou seja, qual o significado delas, antes mesmo da interpretação do que os textos querem dizer.

Utilizarei como fonte do original o Textus Receptus (o mais conservador; vou utilizá-lo por ser o mais usado por fundamentalistas) do novo testamento em grego koinê e diversas versões e traduções que sempre indicarei na própria citação.

Começaremos por apresentar o texto de 1 Coríntios 6: 9-10 em diversas versões em português para ver como são traduzidos os termos que discutiremos:


1. Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus?
Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, n
em os efeminados, nem os sodomitas, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os maldizentes, nem os roubadores herdarão o reino de Deus (trad. Almeida Corrigida Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil);

2. Ou vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus? Não se enganem: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem afeminados, nem homossexuais, nem ladrões, nem avarentos, nem bêbados, nem maldizentes, nem roubadores herdarão o Reino de Deus (trad. Nova Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil);

3. Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos, nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus (trad. Nova Versão Internacional da Sociedade Bíblica Internacional);

4. Vocês não sabem que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não se enganem: aqueles que se envolvem em imoralidade sexual, adoram ídolos, cometem adultério, se entregam a práticas homossexuais, são ladrões, avarentos, bêbados, insultam as pessoas ou exploram os outros não herdarão o reino de Deus (trad. Nova Versão Transformadora da Editora Mundo Cristão);

5. Acaso não sabeis que os injustos não hão de possuir o Reino de Deus? Não vos enganeis: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os devassos, nem os ladrões, nem os avarentos, nem os bêbados, nem os difamadores, nem os assaltantes hão de possuir o Reino de Deus (trad. Ave Maria da Editora Ave Maria)


Utilizei 4 versões contemporâneas protestantes (evangélicas) e 1 tradução contemporânea romana (católica). Para deixar claro como elas traduzem os termos em controvérsia. Apresento a agora a versão original no Textus Receptus:


η ουκ οιδατε οτι αδικοι βασιλειαν θεου ου κληρονομησουσιν μη πλανασθε ουτε πορνοι ουτε ειδωλολατραι ουτε μοιχοι ουτε μαλακοι ουτε αρσενοκοιται ουτε κλεπται ουτε πλεονεκται ουτε μεθυσοι ου λοιδοροι ουχ αρπαγες βασιλειαν θεου ου κληρονομησουσιν (em grego koinê)


e ouk oidate hoti adikoi basileian Theou ou kleronomesousin me planasthe oute pornoi oute eidololatrai oute moichoi oute malakoi oute arsenokoitai oute kleptai oute pleonektai oute methysoi ou loidoroi ouch harpages basileian Theou ou kleronomesousin (transliterado para os caracteres latinos)


E apresentamos também o texto de 1 Timóteo 1: 10, também em diversas versões em português bem como no original no Textus Receptus:


1. Para os devassos, para os sodomitas, para os roubadores de homens, para os mentirosos, para os perjuros, e para o que for contrário à sã doutrina (trad. Almeida Corrigida Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil);

2. Para os que praticam a imoralidade, para os que se entregam a práticas homossexuais, para os sequestradores, para os mentirosos, para os que fazem juramento falso e para tudo o que se opõe à sã doutrina (trad. Nova Almeida Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil);

3. Para os que praticam imoralidade sexual e os homossexuais, para os seqüestradores, para os mentirosos e os que juram falsamente; e para todo aquele que se opõe à sã doutrina (trad. Nova Versão Internacional da Sociedade Bíblica Internacional);

4. Para os que vivem na imoralidade sexual, para os que praticam a homossexualidade, e também para os sequestradores, os mentirosos, os que juram falsamente ou que fazem qualquer outra coisa que contradiga o ensino verdadeiro (trad. Nova Versão Transformadora da Editora Mundo Cristão);

5. os impudicos, os infames, os traficantes de homens, os mentirosos, os perjuros e tudo o que se opõe à sã doutrina (trad. Ave Maria da Editora Ave Maria)


Assim como fiz no texto de 1 Coríntios, mantive as 4 versões contemporâneas protestantes e 1 católica, para o texto de 1 Timóteo. Apresento, agora, o texto original:


πορνοις αρσενοκοιταις ανδραποδισταις ψευσταις επιορκοις και ει τι ετερον τη υγιαινουση διδασκαλια αντικειται (grego koinê)


pronois arsenokoitais andrapodistais pheustais epiorkois kai ei ti eteron te ugiainouse didaskalia antikeitai (transliterado para os caracteres latinos)


II – A Análise Semântica e Crítica


Em ambos os textos, os problemas, então, vêm da tradução dos termos em negrito: arsenokoitai e malakoi. Há também um discussão em torno do termo pornoi, que abordaremos rapidamente apenas para contextualização.

A palavra grega pornoi é comumente mal traduzida, principalmente quando é versada por “imoralidade sexual”, porque seu sentindo mais comum é de “prostituição”, e não se refere a um tipo de imoralidade geral como as traduções parecem induzir, mas particular. Mas, os tradutores modernos de vertente conservadora e ortodoxa insistem nesta forma porque isto favorece a hermenêutica deles.

Fechado esse adendo, passamos ao entendimento semântico das palavras citadas e destacadas acima.

A palavra grega arsenokoitai é um neologismo criado por Paulo (em 1 Coríntios) e utilizada pelo autor desconhecido de 1 Timóteo, posteriormente. Há uma discussão muito forte em torno do seu significado por não ter referências de seus uso fora destes textos. Porém, há uma certa concordância que se refiram a junção das palavras arsenos (macho) e koités (fazer sexo, se deitar com) de Levítico 18:22 (já analisamos este texto em estudos anteriores) na versão que Paulo usava que era a Septuaginta, a versão grega dos escritos judeus. Portanto, o sentindo mais simples é o de que ela se refere a machos humanos que fazem sexo com outros machos humanos (o que chamamos de homoerotismo).

Então, neste sentindo o significado pareceria claro, certo? Parece claro que os irmãos de Corínto (para quem foi destinada a epístola) e os destinatários de 1 Timóteo, entendiam o significado de arsenokoitai facilmente dentro de um rol. A questão que discute, portanto, não é se essa palavra tem ou não relação com o homoerotismo do século I d.C., mas se ela se aplicava irrestritamente a qualquer situação ou a uma questão específica.

A semântica em si não nos dá um certa segurança de sua abrangência, então, recorremos a entender como os tradutores ao longo do tempo o faziam. Vamos nos a ter as versões em português.

Traduções Contemporâneas para arsenokoitai: sodomitas (v. Almeida Corrigida Fiel), homossexuais (v. Nova Almeida Atualizada), homossexuais ativos (v. Nova Versão Internacional), praticantes de homossexualidade (v. Nova Versão Transformadora) e devassos (v. Ave Maria).

Tradução antiga: somitigo (v. Almeida de 1681), os que com machos se deitam (Almeida de 1819); os que com machos se deitam (Almeida de 1848) e sodomitas (Almeida de 1903).

Ao que parece a tradução destes termos é um tanto quanto insatisfatória, já que a palavra original é aplicada dentro de um contexto específico que não nos permite traduzí-la por “homossexuais”, já que ela, mesmo sendo conservadores, se aplicaria apenas as relações homoeróticas masculinas. E juntamente com malakoi tem seu sentido variando de acordo com os preconceitos da época. Já que não podemos traduzir a ambos dissociadamente.

Malakoi é comumente traduzido contemporaneamente como “homossexual passivo” e “afeminado”. Mas, historicamente, já foi traduzido como “depravados” e apenas “imorais”.

Ao final, ficamos que ambas as palavras não são facilmente traduzíveis, por não ter respectivos termos na modernidade. Arsenokoitai era a forma que os judeus da época de Paulo designava uma série de práticas homoeróticas, geralmente que degradavam a dignidade da pessoa humana. Era comum na sociedade grego-romana de então, se comprar e manter escravos sexuais masculinos para o deleite de seus senhores, já que o pensamento de então, ter relações sexuais não reprodutivas era ilícito com mulheres (contra a natureza), bem como era lícito fazer sexo com homens adolescentes (jamais com homens adultos e cidadãos). O conceito parece estar o tempo todo atrelado com a fragilidade de quem recebesse o sexo homoeróticos com penetração, seja por obrigação do dono, seja em troca de dinheiro seja no âmbito da pedarestia.

Não é possível, portanto, se dizer que arsenokoitai significa homoerotismo de qualquer gênero e irrestrito, mas a casos particulares. Dizia mais respeito a subjugação do outro do que necessariamente ao sexo feito entre homens.

Já a palavra malakoi que significa “macio, mole” era substantivado para se referir a homem que se colocavam no lugar de uma mulher, como se tal fosse. Era indigno a um homem, para a época, se rebaixar a qualidade de um escravo (se subjugando a ser passivo numa relação homoerótica) ou de uma mulher (permitindo que ela o dominasse na relação sexual). Veja que mesmo em relações heteroeróticas, se o homem se deixasse dominar pela mulher, ele seria considerado um malakoi.

Torna-se um tanto quanto complicado dizer que esta palavra se refira a homossexual passivo, e até mesmo, afeminado é um termo equivocado. Já que tem mais a ver com o sentindo de se subjugar a uma relação não condizendo com sua posição social.

Veja que ambos os conceitos tem relação direta com a cultura de sua época. Paulo estava falando para a igreja de corínto acostumada com essas práticas que degradavam a dignidade da outra pessoa. Fazer um homem adulto se colocar numa condição de mulher numa relação sexual era a morte civil e cidadão da pessoa. E isto reflete o caráter da cultura patriarcal de então. O texto de 1 Timóteo, colabora com esse entendimento quando coloca arsenokoitai num rol com sequestradores, dos que prestam falso testemunhos, homicidas, etc.

Modernamente, essas questões foram majoritariamente suplantadas. O sujeito homossexual não tem sua vida atrelada a um comportamento religioso ou a um comportamento de subjugação social. Não há que se falar em subjugação por ser escravo ou por se vender numa relação de degradação humana.

Portanto, qualquer tradução que der a entender que os textos de 1 Coríntios e 1 Timóteo se referiram a qualquer prática homoerótica, estão praticando obviamente um anacronismo histórico. Não há na realidade presente qualquer maneira de entender de outra forma, sem que incorra em descontextualização, conservadorismo raso e má vontade intelectual. Forçando um bocado, no mínimo é necessário reconhecer que tais textos são polêmicos e de difícil tradução.

Não estamos mais no século I d.C. e nunca vamos conseguir entender plenamente o que aquela realidade exprimia, mas podemos dizer, com certa precisão, que a condenação a homossexualidade, nos termos da atualidade, é meramente exercício de preconceitos de uma sociedade e pessoas conservadoras e nada tem a ver com espiritualidade e teologia de fato. Assim o pensam, porque antes o eram preconceituosos e se justificam na bíblia, para favorecer seus próprios preconceitos.


Ficamos por aqui neste estudo 5, e prosseguimos no próximo estudo. Até lá!

Que o Senhor Jesus esteja com cada um de nós, hoje e para sempre! A Ele seja glória para sempre! Amém!